Quaresma e jejum

É oportuno no início da Quaresma refletir sobre os tradicionais três meios de ascese que praticamente todas as religiões oferecem aos seus seguidores: o jejum, a oração e a esmola. É oportuno também lembrar que Santo Ivo praticou cada um deles com grande rigor e obteve um sucesso impressionante durante a sua vida toda. Assim, o quê o seu exemplo pode nos ensinar e quais são as armadilhas que devemos evitar nestes assuntos? Na verdade os santos são canonizados para nos oferecer exemplos de vidas totalmente orientadas a Deus.

image006O jejum manifesta nossa capacidade de controlar o nosso impulso mais fundamental: o instinto de sobreviver. Os animais lutam unicamente para se nutrir e para se reproduzir, isto é, para satisfazer o instinto de sobrevivência pessoal e o instinto de sobrevivência da sua raça. E de fato, os seres humanos são capazes de lutar por muitas outras coisas, ainda que possuam tudo o que necessitam para viver! Porém, o ser humano vai muito mais além de sua dimensão animal: pois, somos convidados a superar nossos instintos básicos. Isso é muito importante em nossas sociedades de consumo, nas quais, como escreveu um filósofo contemporâneo: “Consumo, logo sou”, parece que apenas somos alguém quando consumimos. Isso nos leva a entender que o jejum tem a finalidade de nos possibilitar a experiência da falta. Descobrir que, além dos alimentos que nos nutrem, é o Senhor da vida que nos nutre. É também sentir nossa fragilidade. É uma maneira de retornarmos ao essencial, aceitar-nos em nossos limites. E é do fundo de nossos limites que invocamos o Senhor, nosso Deus.  

image005O jejum nos torna mais conscientes de nossa própria fragilidade, mais compreensivos e compassivos também com as fraquezas alheias, e por isso, mais misericordiosos. Com efeito, o jejum nos desperta para a solidariedade com todos os nossos irmãos e irmãs. Não vamos remediar a fome no mundo, nem a pobreza, a injustiça, mas constatar que a fome no mundo, a pobreza e a injustiça nos dizem respeito. E somos tão afetados que, voluntariamente, nos aproximamos da experiência de quem todos os dias dorme com o estômago vazio. É um gesto de compaixão para estar mais disponíveis para com o nosso próximo: faz parte do que chamamos de “comunhão dos santos”, isto é, uma comunhão espiritual entre todos os que acreditam em Deus.

Porém, além disso, o jejum cristão fortalece em cada um de nós o desejo de alcançar a comunhão com O Esposo da humanidade: o próprio Jesus. Devemos notar que, no Evangelho, Jesus explica que Seus discípulos, os Cristãos, devem dar um novo e último sentido ao jejum. Para nós, jejuar significa que nada, mais ainda, que ninguém pode cumprir o nosso desejo mais profundo, a não ser Ele! Assim como a noiva quer estar com o seu esposo bem-amado. De fato, o ser humano é, antes de tudo, um ser de desejo. Não basta-lhe satisfazer as suas necessidades naturais (comer, beber, dormir, se reproduzir, …), nem mesmo as necessidades que são características da raça humana (aprender, desenvolver talentos, receber responsabilidades, …). Trata-se de ser respeitado e amado. Ora, só Deus, cujo verdadeiro rosto é revelado por Jesus, pode amar cada um de nós incondicionalmente. 

image011Pois, o exemplo da vida de Santo Ivo nos fala algo a respeito disso. Ivo era tão apaixonado por Deus que O procurava o tempo todo. Quanto à sua própria alimentação, várias testemunhas falaram que Santo Ivo se contentava em comer somente pão grosseiro, e nunca comia carne nem peixe. Tampouco bebia vinho ou qualquer outra bebida alcoólica, e se contentava com apenas uma refeição por dia, exceto aos domingos, quando ceava frugalmente. Uma testemunha afirmou que santo Ivo celebrava a Páscoa aceitando dois ovos no seu cardápio! Nos outros dias, comia apenas legumes cozidos na água, sem nenhum tempero. Não é de surpreender que a incrível austeridade de sua vida tenha produzido grande impacto em seus contemporâneos!

image007image010Contudo é necessário apontar que seu modo austero de vida não é o motivo de sua canonização. O interessante é que sua extrema ascese manifestava o seu desejo de estar todo o tempo com Deus. Nada podia desviá-lo da busca permanente da presença de Deus em sua vida. Da mesma maneira, São Francisco de Assis comia o que achava nas lixeiras; no entanto, por misericórdia, uma noite ele acordou os seus irmãos para comer porque ouviu um deles gemer de fome enquanto dormia…. Também, São Bernardo era dito tão ascético que era possível ver através dele! São Patrício, São Colombano, São Bruno, Santa Teresa de Ávila também eram famosos por suas asceses.

São Francisco de Salles

São Francisco de Sales

image008E… vários outros santos, como Santo Afonso de Ligório, ou Francisco de Sales, apontaram o risco maior da ascese: o orgulho espiritual. Com efeito, existe uma maneira muito perigosa de praticar o jejum: a busca da prova de sua superioridade sobre todos aqueles que não podem superar os seus instintos. Existe uma palavra muito famosa sobre as monjas jansenistas de Port-Royal na França: eram ditas “puras como os anjos e orgulhosas como os demônios.”!

Além disso, cabe a cada pessoa encontrar seu modo de ascese. Talvez, Santo Ivo fosse vegetariano e não gostasse de carne e nem de peixe… De vez em quando, na Quaresma, uma pessoa pode buscar um estilo de vida mais saudável, com refeições mais regulares e uma comida mais equilibrada. O objetivo será cuidar de suas capacidades físicas para melhor servir Deus através dos outros. A mesma coisa pode ser dita a respeito do sono… Contudo, o comer, o beber e o dormir são muito simbólicos por causa das razões expostas nos início desta reflexão: superar os instintos animais que geram a violência. Claro, nesta perspectiva, a Quaresma oferece também o tempo privilegiado para lutar contra os nossos hábitos ruins assim como o consumo de álcool, de tabaco e todos os apegos desordenados (televisão, lazeres, internet, esporte,…).