Carta do Papa Francisco

Extratos da Carta aos participantes do XIX Congresso Internacional de Direito Penal e III Congresso de Associação Latino-Americana de Direito Penal e Criminologia.  (No Vaticano, 30 de maio de 2014)

   o calvário de Pleyben

o calvário de Pleyben

“Gradualmente, o Senhor ensinou ao seu povo que existe uma assimetria necessária entre o delito e a pena, que não se põe remédio a um olho ou a um dente quebrado rompendo outro. Trata-se de fazer justiça à vítima, não de justiçar o agressor. Um modelo bíblico de reparação pode ser o Bom Samaritano. Sem pensar em perseguir o culpado para que assuma as consequências do seu gesto, assiste quem permaneceu ferido gravemente à margem do caminho, indo ao encontro das suas necessidades (cf. Lc 10, 25-37).

Nas nossas sociedades tendemos a pensar que os delitos se resolvem quando se captura e condena o delinquente, mantendo à distância os danos provocados ou sem prestar uma atenção suficiente à situação em que permanecem as vítimas. No entanto, seria um erro identificar a reparação unicamente com o castigo, confundir a justiça com a vingança, o que só contribuiria para aumentar a violência, contudo institucionalizada. A experiência diz-nos que o aumento e a exacerbação das penas muitas vezes não resolvem os problemas sociais, e nem sequer conseguem fazer diminuir as taxas de criminalidade. Além disso, podem gerar-se graves problemáticas para a sociedade, como são os cárceres superlotados e as pessoas presas sem uma condenação… Em quantas ocasiões vimos o réu expiar a sua pena objetivamente, cumprindo a sua condenação mas sem mudar interiormente e sem se restabelecer das feridas do coração.

A este propósito os meios de comunicação, no seu exercício legítimo da liberdade de imprensa, desempenham um papel muito importante e têm uma grande responsabilidade: devem informar de modo correto e não contribuir para criar alarme ou pânico social, quando difundem notícias sobre casos criminosos. Estão em jogo a vida e a dignidade das pessoas, que não podem tornar-se casos publicitários, muitas vezes até doentios, condenando os supostos culpados ao desprezo social ainda antes de serem julgados, ou forçando as vítimas, para finalidades sensacionalistas, a reviver publicamente a dor experimentada.”

 

o bom ladrão

o bom ladrão

“Se o delinquente não for ajudado suficientemente, se não lhe for oferecida uma oportunidade para que se possa converter, acabará por ser vítima do sistema. É necessário fazer justiça, mas a justiça autêntica não se contenta simplesmente com castigar o culpado. É necessário ir além e fazer o possível para corrigir, melhorar e educar o homem, a fim de que ele amadureça sob todos os pontos de vista, de tal maneira que não desanime, enfrente o dano por ele provocado e consiga voltar a definir a sua vida, sem ser esmagado pelo peso das suas próprias misérias.

Um modelo bíblico de confissão é o do bom ladrão, ao qual Jesus promete o Paraíso porque foi capaz de reconhecer o seu erro: «Para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas Este não fez mal algum» (Lc 23, 41). (…)

Não poucas vezes a delinquência afunda as suas raízes nas desigualdades económicas e sociais, nas redes da corrupção e no crime organizado, que procuram cúmplices entre os mais poderosos e vítimas entre os mais vulneráveis. Para prevenir este flagelo, não é suficiente dispor de leis justas, mas é preciso formar pessoas responsáveis e capazes de as pôr em prática. Uma sociedade baseada unicamente nas regras do mercado, criando expectativas falsas e necessidades supérfluas, descarta quantos não estão à altura e impede que as pessoas lentas, frágeis e menos dotadas abram caminho na vida (cf. Evangelii gaudium, 209)”.

o filho pródigo

o filho pródigo

“A contrição é o pórtico do arrependimento, é aquela senda privilegiada que leva ao Coração de Deus, que nos acolhe e nos oferece mais uma oportunidade, contanto que nos abramos à verdade da penitência e nos deixemos transformar pela sua misericórdia. A Sagrada Escritura fala-nos dela quando descreve a atitude do Bom Pastor, que deixa as noventa e nove ovelhas, que não têm necessidade dos seus cuidados, e vai à procura daquela que anda errante e está perdida (cf. Jo 10, 1-15; Lc 15, 4-7), ou a do Pai bom, que acolhe o filho mais jovem sem recriminações e com o perdão (cf. Lc 15, 11-32). É também significativo o episódio da mulher adúltera, à qual Jesus diz: «Vai e não voltes a pecar» (Jo 8, 11). Aludindo ao mesmo tempo ao Pai comum, que faz brilhar o sol sobre os maus e os bons, que faz chover sobre os justos e os injustos (cf. Mt 5, 45), Jesus convida os seus discípulos a ser misericordiosos, a pagar com o bem a quantos lhes fazem mal, a rezar pelos seus inimigos, a oferecer a outra face, a não guardar rancor…

a mulher adúltera

a mulher adúltera

A atitude de Deus, que primerea o homem pecador, oferecendo-lhe o seu perdão, apresenta-se assim como uma justiça superior, imparcial e ao mesmo tempo compassiva, sem que haja contradição entre estes dois aspectos. Com efeito, o perdão não elimina nem diminui a exigência da correcção, própria da justiça, nem prescinde da necessidade de conversão pessoal, mas vai além, procurando restabelecer as relações e reintegrar as pessoas na sociedade. A meu ver, é aqui que se apresenta o grande desafio, que devemos enfrentar todos juntos a fim de que as medidas adoptadas contra o mal não se contentem com reprimir, dissuadir e isolar quantos o causaram, mas que os ajudem também a meditar, a percorrer as veredas do bem, a ser pessoas autênticas que, longe das suas misérias, se tornem elas mesmas misericordiosas. Portanto, a Igreja propõe uma justiça que seja humanizadora e genuinamente reconciliadora, uma justiça que, através de um caminho educativo e de uma penitência corajosa, leve o delinquente à penitência, à reabilitação e à reinserção total na comunidade.

(…) Aqui reside a diferença entre uma sociedade includente e outra excludente que não põe no centro a pessoa humana, prescindindo dos restos que já não lhe servem.

(…) O Senhor Jesus, (…) nos dias da sua vida terrena foi aprisionado e condenado à morte injustamente, identificando-se com todos os cativos, culpados e não («eu estava na prisão e viestes visitar-me», Mt 25, 36). Ele desceu até aquelas obscuridades criadas pelo mal e pelo pecado do homem para fazer resplandecer ali a luz de uma justiça que enobrece e exalta, com a finalidade de anunciar a Boa Nova da salvação e da conversão.”